O DIREITO À CIDADE COMO DIREITO HUMANO COLETIVO

Maria Eliza LemosSchueller Pereira da Silva[1]

Giuseppe Gazzinelli Silva de Barros ²

Resumo: A erradicação da pobreza, marginalização e a redução das desigualdades sociais, bem como a promoção do bem de todos, são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, os princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade são vértices axiológicos de interpretação constitucional e núcleos centrais que emanam e validam os direitos fundamentais. O direito à cidade assimila idênticos propósitos, é desdobramento destes princípios e deles retira validade.A Constituição da República alterou o status jurídico das cidades brasileiras, sendo acompanhada pelo Estatuto da Cidade, ao tornar o planejamento urbano dos municípios obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes e determinar que o objetivo da política de desenvolvimento urbano, bem como, o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. A Constituição de 1988 reconhece pela primeira vez que as cidades, apesar de não fazerem parte da Federação, são espaços de poder político do Estado de Direito brasileiro, ao anuir esse poder político, a Constituição da República atribui força normativa vinculante a qualidade de vida urbana para seus habitantes, desta forma, seria possível afirmar que o direito à cidade é um direitohumano coletivo? Haja visto, que o direito à cidade é titularizado por um grupo de pessoas, destacando-se que em relação a eles a ideia de grupo prepondera sobre a dos indivíduos que a compõem. Configura-se, pois, como direito indivisível vez que não há como repartir a satisfação do interesse grupal em quinhões atribuíveis aos indivíduos interessados (Lei número 8.078, de 11/09/90 – Código de Defesa do Consumidor, art. 81, parágrafo único), o desenvolvimento das funções sociais da cidade é de interesse de todos os seus habitantes, constituindo-se enquanto um interesse transindividual, uma vez que todos os munícipes são afetados pelas atividades, funções e impactos desempenhados em seu território, portanto, a relação que se estabelece entre os sujeitos e a cidade é um bem de vida difuso. O direito à cidade, mesmo não sendo um conceito jurídico positivado, diante do exposto, pode ser vislumbrado em várias partes do ordenamento jurídico, mesmo que em termos teóricos, faz-se necessária sua conceituação, para que possa ser posto na prática jurídica, tendo em vista a melhoria de vida de seus habitantes. Outro princípio jurídico a ser preservado ao se titular o direito à cidade, é o da função socioambiental da propriedade urbana, não só para esta, mas também, para as futuras gerações. 

Palavras-chave: República Federativa do Brasil, Direito Humano Coletivo; Princípio daDignidade da Pessoa Humana.

Abstract: Abstract: The eradicationofpoverty, marginalizationandthereductionof social inequalities, as well as thepromotionofthegoodofall, are fundamental objectivesoftheFederativeRepublicofBrazil, theprinciplesofhumandignityandsolidarity are axiologicalverticesofconstitutionalinterpretationand central nucleithatemanateandvalidate fundamental rights. The righttothecityassimilatesidenticalpurposes, isanunfoldingoftheseprinciplesand derives validityfromthem. The ConstitutionoftheRepublicchangedthe legal status ofBraziliancities, beingaccompaniedbythe City Statute. Bymakingtheurbanplanningofmunicipalitiesmandatory for citieswith more than 20 thousandinhabitantsanddeterminingthattheobjectiveoftheurbandevelopmentpolicy, as well as thefulldevelopmentofthecity’s social functionsandensuringthewell-beingof its inhabitants. The 1988 Constitutionrecognizes for thefirst time thatcities, despitenotbeingpartoftheFederation, are spacesofpoliticalpoweroftheBrazilianRuleof Law. Byapprovingthispoliticalpower, theConstitutionoftheRepublicattributesbindingnormative force tothequalityofurbanlife for its inhabitants, in thisway, would it bepossibletoaffirmthattherighttothecityis a collective human right? As youcansee, it isheldby a groupofpeople, highlightingthat in relationtothemtheideaof a groupprevails over thatoftheindividualsthatmake it up. It isthereforeconfigured as anindivisiblerightsincethereis no wayto divide thesatisfactionofgroupinterestintosharesattributabletointerestedindividuals (Law number 8,078, of 11/09/90 – ConsumerProtectionCode, art. 81, sole paragraph ), thedevelopmentofthecity’s social functionsisofinteresttoall its inhabitants, constituting a trans-individualinterest, sinceallcitizens are affectedbytheactivities, functionsandimpactscarried out in theirterritory, therefore, therelationshipthatisestablishedbetweenthesubjectsandthecityis a diffusegoodoflife. The righttothecity, eventhough it isnot a positive legal concept, in viewoftheabove, canbeglimpsed in variouspartsofthe legal system, evenif in theoreticalterms, its conceptualizationisnecessary, sothat it canbeputinto legal practice, havingwith a viewtoimprovingthelivesof its inhabitants. Another legal principletobepreservedwhen holding therighttothecityisthesocio-environmentalfunctionofurbanproperty, notonly for thisone, butalso for future generations.

Keywords: FederativeRepublicofBrazil, CollectiveHuman Law; PrincipleofHumanDignity.

1          INTRODUÇÃO

Quando a propriedade privadaassume sua função social, chega-se à segunda geração de direitos fundamentais. Para uma tentativa de conceituação do direito à cidade é de fundamental importância uma varredura do direito de propriedade até chegar ao ponto em que ele alcança sua função coletiva. A mudança de paradigma evoluiu e se consolidou, sendo o direito brasileiro um exemplo internacional de aceitação e regulação jurídica da ideia de direitos coletivos, a partir da Lei n. 7.347/85, a chamada Lei da Ação Civil Pública, o direito brasileiro institucionalizou o conceito de direitos coletivos em sentido amplo, a Constituição da República de 1988 elevou esta nova categoria ao status de direitos fundamentais no Título II da Carta Magna. Por fim o art. 81 da Lei 8.078/90 organizou definitivamente a estrutura conceitual dos direitos coletivos.

A nova ordem constitucional deflagrada em 1988 com o advento da Lei 10257/2001, autodenominada Estatuto da Cidade, reconhece o poder político das cidades e suas funções sociais, bem como o direitode se viver em uma cidade sustentável. Para a garantia desse, os princípios de Direito Urbanístico, ramo do direito público, devem ser aplicados de maneira a viabilizar oprocesso de urbanização e desenvolvimento das cidades, notadamente, no que tange ao planejamento e gestão das políticas urbanas, inviabilizando, desta forma, a redução do seu potencial por conta de uma leitura civilista de normas de Direito Público, uma leitura individualista de direitos coletivos (FERNANDES, 2006).

          A devida compreensão da dimensão jurídica do processo de desenvolvimento urbano requer uma mudança paradigmática no tratamento jurídico do direito de propriedade imobiliária urbana no âmbito individualista do Direito Civil para colocá-lono âmbito social do Direito urbanístico, de forma que o direito coletivo ao planejamento das cidades, criado pela constituição Federal de 1988, seja materializado.

Para tentativa de uma conceituação do direito à cidade como direito humano coletivo, serão desenvolvidos apontamentos históricos, sociais e políticos sobre o direito de propriedade, sua função social, bem como sua correlação com os Direitos Fundamentais. Em seguida, será feita uma análise dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal, que regulamentam o Estatuto, o qual veio a constitucionalizar o Direito Urbanístico, assim como,a função social da cidade e da propriedade urbana, além de ressaltar a importância do direito à cidade; enquadrando-a entre os direitos coletivos, para a garantia da sua efetividade, bem como para ressaltar a importância da preservação do princípio da função socioambiental do Direito Urbanístico.  Ao final, serão apresentadas as conclusões.

2          APONTAMENTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E JURÍDICOS

Abordar a história da propriedade, é falar sobre a história da humanidade. A propriedade é a razão pela qual evoluímos ou involuímos em direção aos direitos fundamentais. Propriedade é sinônimo de poder econômico e político. Não existe Estado sem território, não existe território sem proteção do Estado.

Primitivamente, a propriedade era coletiva, as terras e os instrumentos de defesa e produção pertenciam à coletividade. Na Antiguidade Clássica surgem os primeiros traços individualistas da propriedade. A propriedade romana passou por três distintos estágios: coletiva, familial e individual sendo que esta última prevaleceu no tempo e influenciou sobremaneira o direito de propriedade no Ocidente.

Na primeira fase da Idade Média, notadamente com o pensamento de São Tomás, tem-se ideias acerca do influxo de interesses coletivos sobre a propriedade individual, bem comum que era definido pelo clero e pela nobreza. Contudo, é a gênese do que adiante se consolidou como função social da propriedade.

A Revolução Francesa é a ruptura com os regimes antecedentes e a propriedade foi uma questão central. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 apresenta rol de direitos individuais do homem, entre eles uma propriedade inviolável e sagrada. É a primeira geração de direitos fundamentais.

O paradigma liberal implicava no distanciamento do Estado da economia, omisso frente aos problemas sociais e econômicos. A lei visava proteger cidadão frente ao Estado, o Direito tinha como função estabelecer um mínimo de normas que define os limites de atuação do Estado (BARACHO JUNIOR, 2000:54).

As Constituições dessa tradição estatal declararam os direitos individuais, cujo único limite era o direito do outro. Nesse contexto, a propriedade era vista como um direito absoluto no qual o interesse do privado se sobrepunha ao público, inatingível por interferências estatais. Os Códigos Civis Francês (1804) e o Brasileiro (1916) espelham esses conceitos e essa visão absolutista da propriedade, mas existiam algumas restrições, principalmente no direito de vizinhança.

As lutas contra a exploração, pelo direito de associação, por direitos sociais, econômicos e pelo amparo estatal na regulação da economia foram significativas na ruptura do paradigma Liberal e tiveram expressão máxima na Revolução Russa e na Constituição Mexicana, ambas datadas de 1917.

A noção de um certo grau de intervenção estatal na economia tem por objetivo assegurar aos particulares um mínimo de igualdade e liberdade real na vida em sociedade, bem como a garantia de condições materiais de vida mínimas para uma existência digna.

Os direitos fundamentais a prestações enquadram-se no âmbito dos assim denominados direitos de segunda geração (ou dimensão), correspondendo à evolução do Estado de Direito, na sua matriz liberal burguesa, para o Estado democrático e social de Direito, consagrando-se principalmente após a Segunda Guerra Mundial.

O paradigma estatal social consolidou os direitos fundamentais de segunda geração (sociais e econômicos) e caracterizou-se pela prevalência do direito público sobre o privado. É reconhecido aos cidadãos direitos como moradia e trabalho.

A propriedade perde seu cunho absolutista e é direcionada aos interesses coletivos, surge aqui o instituto da desapropriação, com a finalidade de adequar a propriedade particular a interesses comuns. A propriedade privada não tem mais caráter absoluto, mas funcional, à medida que deve se voltar para sua função social (BARACHO JUNIOR,2000:58).

Ao longo do século XX o Estado Social de Direito entre em crise e surge uma nova tradição estatal: o Estado Democrático de Direito. Esse paradigma é marcado pela concretização dos direitos de terceira geração pertencentes não ao indivíduo, mas à sociedade como um todo e por isso são denominados de direitos difusos. A propriedade também é revista e repensada e só faz sentido se atender ao bem da coletividade, se apresentar em conformidade com o direito do outro e o da coletividade, eis uma nova ordem de limitações à propriedade.

No Brasil, início da década de 60 iniciaram-se os movimentos para reformas estruturais da questão fundiária na zona rural e urbana. Todavia, o golpe militar (1964-1984) suprimiu a democracia e a realização de tais reformas foi abortada. Os temas da reforma urbana reapareceram nos anos 70 e 80, numa época em que os movimentos sociais aos poucos ganhavam mais visibilidade e relevância política. Albergavam como importante dimensão: a politização da questão urbana, compreendida como elemento fundamental para o processo de democratização da sociedade brasileira.

A efetiva mudança deste paradigma teve aspiração popular com a apresentação de uma proposta de emenda popular à Assembléia Nacional Constituinte, com vistas de introduzir a reforma urbana. A Constituição da República ganhou, então, um capítulo sobre a política urbana, inserido dentro do título destinado à ordem econômica e financeira.

Entre os anos de 1940 e 1991 o êxodo rural fez com que a população das cidades crescesse de 31,2% para 75% do total. O despojamento de pessoas do território onde moravam em razão das construções de barragens hidroelétricas foi significativo fator para esta urbanização. Já em 2000, da população total de 170 milhões, 81,2% se encontravam em áreas urbanas.

O crescimento rápido das cidades brasileiras ocorreu sem uma base jurídica adequada, assim, como, a falta de implementação de qualquer política pública específica, provocou, então, mudanças drásticas na sociedade brasileira, de ordem socioeconômica, territorial, cultural e ambiental. Todo o processo se deu sob o paradigma jurídico do civilismo clássico, que não correspondia às necessidades de enfrentamento desse fenômeno multidimensional, complexo e com tantas implicações profundas que levou à transformação de um país de base agrária exportadora em um país de base urbano-industrial.

Os artigos 182 e 183, alteraram o status jurídico das cidades, reconheceram a plena urbanização do Brasil e adotaram organização socioeconômica e político-territorial diversas dos institutos civilistas de 1916. Mais de dez anos depois, foi promulgada lei regulamentadora desses dispositivos constitucionais. Este marco fundamental intitulado Estatuto da Cidade (2005) foi a razão pela qual o Brasil recebeu inúmeros prêmios internacionais.

A ordem urbanística passou a ser tutelada por meio da ação civil pública em razão de alterações legais trazidas pelo Estatuto da Cidade. Este instrumento de proteção aos interesses difusos dos habitantes da cidade tem como papel buscar o efetivo cumprimento das normas de direito urbanístico e das funções socioambientais das cidades. Deve ser conferida legitimidade de ação na esfera administrativa e judicial a qualquer habitante ou grupo de moradores para atuar da defesa dessas funções sociais e da ordem urbanística (OSÓRIO, 2006).

O Estatuto da Cidade originou-se do Projeto de Lei n.º 2.191, de 1989, que recebeu o n.º 181/89 no Senado Federal e na Câmara dos Deputados o n.º 5.788/90. Em 18 de junho de 2001, foi aprovado no Congresso e, finalmente, sancionado em 10 de julho deste mesmo ano pelo Presidente da República como a Lei 10257/01.

OEstatutoinovouodireitourbanísticoaodisciplinarousodapropriedadeurbanacomvistasaassegurarobem-estardoscidadãos,oequilíbrioambientaleodesenvolvimentoda funçãosocialdacidadeedapropriedadeurbana,visandogarantirodireitoàscidades sustentáveis.

Entre as inovações podem-se mencionar os institutos políticos e jurídicos previstos no inciso V, do artigo 4°: concessão de uso especial para fins de moradia; parcelamento do solo;edificaçãoouutilizaçãocompulsória;usucapiãoespecialdeimóvelurbano; direito de superfície; direito de preempção; outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso;transferênciadodireitodeconstruir;operaçõesurbanasconsorciadas; e consórcio imobiliário (art. 46).

O Estatutoda Cidade defineodireitoàscidadessustentáveiscomoodireitoàterra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporteeaos serviçospúblicos,aotrabalhoeaolazer,paraaspresentesefuturas gerações (art. 2º, I). Institui, de forma inovadora, a gestão democrática e participativa da cidade, colocando em primeiro plano a democracia direta.

3          O DIREITO À CIDADE COMO DIREITO HUMANO COLETIVO

Atrajetóriadaslutassociaispelareformaurbanasedimentaaauroradodireitoà cidadesustentávelcomodireitofundamentalemergentenosistemajurídico nacional, ganhando forma e tratamento jurídico recentes, ou seja, perpassa o campo político e alcança o jurídico.

AConstituiçãodaRepúblicavale-sedaexpressão“cidade(s)” em poucas oportunidades: arts. 29, XIII; 182, caput; 182, § 1º; 182 § 2º; e 242 § 2º. A última é uma menção específica à cidade do Rio de Janeiro, diferente da indeterminação adotada nas demais. Já na primeira, o constituinte expressa distintamente a existência de interesses específicos do Município e da cidade, o que deixa entrever o reconhecimento das cidades como participantes do espaço político do Estado de Direito brasileiro.

É no artigo 182 e seus parágrafos que esse poder político é efetivamente reconhecido. Com efeito, quando a Lei Maior determina que a política de desenvolvimento urbano tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, o planejamento urbano torna-se obrigatório para cidades com mais de 20.000 (vinte mil) habitantes; e condiciona a funçãosocialdapropriedadeurbanaaoatendimentodasexigências fundamentais de ordenação da cidade.

Muito embora não se encontre formal e institucionalmente entre as unidades federadas que formam a República Federativa do Brasil (art. 1º, caput, CR/88), a cidade, na nova ordem constitucional, abandona seu caráter meramente físico e deixa de ser unicamente sede administrativa. Agora, materialmente ocupa espaço político como um conjunto de instituições e atores que intervêm na sua gestão e na implementação e desenvolvimento das políticas urbanas (CARTA, 2005).

A cidade assume a condição de espaço coletivo culturalmente rico e diversificado que pertence a todos os seus habitantes, onde o usufruto coletivo da riqueza, bens e conhecimentos são garantidos a todos. O seu território é lugar de exercício e cumprimento dos direitos difusos e a sua gestão se dá de forma democrática e coletiva.

O planejamento urbano pertence à cidade e tem por objetivo atender a uma função social que apresenta como componentes essenciais: moradia, meio ambiente equilibrado, equipamentos e serviços urbanos, saneamento básico, transporte público, cultura e lazer.

Àtoda a pessoa, sem discriminação de qualquer ordem, deve ser assegurado o direito de se vivem em uma cidade que tenha como princípios norteadores a sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social. A qualidade de vida urbana recebe influxos constitucionais.

O direito à cidade como direito humano coletivo, visa garantir às pessoas que nela habitam – e para as futurasgerações – condiçõesdignasdevida,deexercitarplenamenteacidadaniaeosdireitos fundamentais(civis,políticos,econômicos,sociais,culturaiseambientais),departicipardagestão dacidade,deviver em ummeioambiente ecologicamente equilibrado.Com o Estatuto da Cidade, o direito à cidade sustentável se transformanumnovodireitofundamental,instituídoemdecorrênciadoprincípio constitucional das funções sociaisda cidade (SAULE, 2007).

Afunçãosocioambientaléelementoinerenteeestruturantedascidadeseda propriedade urbana, essência da qual eles não se dissociam. Logo, a função social não se restringe à condição de limite, vai além, exige que a coletividade seja beneficiada, impondo ao particular e ao poder público comportamentos positivos.

Odesenvolvimentodasfunçõessociais da cidade é de interesse de todos os seus habitantes, constituindo-se enquanto um interesse difuso, uma vez que todos os munícipes são afetados pelas atividades, funções e impactos desempenhados no seu território. Portanto, a relação que se estabelece entre os sujeitos é com a cidade, que é um bem de vida difuso (OSÓRIO, 2006), configurando-se como um direito humano coletivo.

Comoprincípioquebuscaaconstruçãodeumanovaéticaurbana,afunçãosocialdacidadealmejaobem-estardoscidadãoseodesenvolvimentourbano sustentável,istoé,o desenvolvimentoeconômicoquealiaharmoniaambientaleinclusãosocial,quenãodesconsidereovalor humano para o desenvolvimento das cidades.

Odireitoàcidadeéconcebidocomobjetivoseelementos próprios, integrandoacategoriadosdireitoscoletivosedifusos,ouseja,é transindividual,denatureza indisponível,cujostitulares sãopessoasindeterminadasligadaspelacircunstânciafáticade habitarem o mesmo espaço físico e político (art. 81, parágrafo único, inciso I, da Lei 8078/90).

O próprio Estatuto da Cidade assinala que suas normas são de interesse social e destinadas a regular o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental (parágrafo único art. 1º).

OinteressesocialquepermeiaoEstatutodaCidadeeservedebase interpretativaédetectadoquandooEstadoencontra-sediantedosinteresses diretamente ligadosàs camadas mais pobres da populaçãoeaopovo em geral, quando atuavisandoamelhoriadacondiçãode vida, distribuição de riqueza, atenuação das desigualdades (FAGUNDES, 1984).

Odireitoàcidadecomo direito humano coletivo,alémde consubstanciarem garantia contra a intervenção indevida do poder público e controlar medidas restritivas, impõe uma postura ativa do Estado, obrigando-o a disponibilizar prestaçõesdenaturezajurídicae material,acriarpressupostosfáticosnecessáriosao exercício efetivo dos direitos constitucionalmente assegurados (prestações positivas).

Estas ideias configuram o que se chama de direitos fundamentais de segunda geração (ou dimensão), também denominados de direitos sociais. As categorias de direitos humanos fundamentais integram-se em umtodo harmônico, mediante influências recíprocas, até porque os direitos individuais estão contaminados de dimensão social, de tal sorte que os direitos sociais lhes quebram o formalismo e o sentido abstrato (SILVA, 2006).

Aintegraçãoentreosdireitosindividuaisesociaisextirpadúvidas quantoa se enquadrarem os segundos como direitos fundamentais, o que também pode ser compreendido pela simples constatação de que eles vêm decantados no art. 6º da Carta Magna que se encontra sob o título II: “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.

O direito à cidade como direito humano coletivo, incorpora-se ao patrimônio da sociedade urbana brasileira, sendo defeso ao Estado tolher esta conquista, seja pela sua titulação de cláusula pétrea (art. 60, §4º, IV, CR/88) seja em decorrência do princípio da proibição de retrocesso.

Introduzidaepositivadaemgraumáximodeintangibilidadeno§4ºdoart.60,devese entenderquearigidezformaldeproteçãoestabelecida em favor dos conteúdos ali introduzidos nãoabrangeapenasoteormaterialdosdireitosda primeira geração,herdadospelo constitucionalismocontemporâneo,senãoqueseestendepor igualaosdireitosda segunda dimensão, a saber, os direitos sociais (BONAVIDES, 2007).

Osdireitosdesegundageraçãoatravessaramperíododejuridicidadequestionada,sujeitadosàcondiçãodenormasprogramáticasemvirtudedelhescarecerashabituaisgarantiasconferidasaosdireitosdaprimeirageração.Logo,deixaramdeserobservadoseexecutados,situaçãoquesealteroucomaprevisãoconstitucionaldeaplicabilidadeimediatadosdireitosfundamentais,que,poróbvio,estende-seaodireito à cidade justa e sustentável.

Recorde-seosentidofundamentaldestaaplicabilidadeimediata:osdireitos,liberdades e garantias são regras e princípios jurídicos, imediatamente eficazes e atuais, por via direta da Constituição. Isto é, não são normas para produção de outras normas, mas sim normas diretamente reguladoras de relações jurídico-materiais (CANOTILHO, 2003).

A aplicação e a interpretação do direito à cidade como direito humano coletivo,deve sempre galgar a sua máximaefetividade pois, as normas jurídicas devem desempenhar função útil no ordenamento. Veda-se uma interpretação que lhe retire ou subtraia a sua razão de existir. Com efeito, a interpretaçãoestá diretamente ligada àaplicaçãodo Direito, não se presta a enunciar abstratamente conceitos.

Aumanormafundamentaldeveseratribuídaosentidoquemaiseficácialhedê;acadanorma constitucional – mormente quando setratedenormadedireitosfundamentais– é precisoconferir,ligadaatodasasoutras normas,omáximodecapacidadederegulamentação e de realização (MIRANDA, 2003)

A par de gozar da máxima efetividade e aplicabilidade imediata, o direito à cidade, para assegurar seu caráter de direito humano coletivo, características próprias dos direitos fundamentais: a indisponibilidade, a imprescritibilidade e a universalidade. A primeira, em seu sentido amplo, inviabiliza sua alienação, transferência e renúncia; ao passo que a segunda determina que ele nunca deixe de ser exigível.

A universalidadeseriaa marca estrutural desses direitos fundamentais, entendida no sentido puramente lógico ou valorativo de atribuição universal a todos os homens.Éocaráteruniversalagrandeformados direitosparaamaioriados pensadores,notadamenteocidentais. Universalidade subjetivaeobjetiva que,enquantotal, desconhecefronteiras, etnias,cor,raça,sexoereligiões (SAMPAIO, 2004).

Compreender e garantir o direito à cidade, efetivar suas funções sociaisécontribuir paraapromoçãodajustiçasocial,fomentaro desenvolvimento sustentável e permitir a inclusão social. A eficácia (jurídica e social) do direito à cidade justa e sustentável deve ser objeto de permanente otimização, na medida em quetemcomoobjetivoaconstante otimização do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) e a redução paulatina das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III CF/88).

O direito à cidade como direito humano coletivo, é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente e inclui, portanto, todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais que já estão regulamentados nos tratados internacionais de direitos humanos (CARTA, 2005). Negar o direito à cidade sustentável, bem como, sua condição de direito coletivo, é confrontar a Constituição da República e obrar em sentido diametralmente oposto à dignidade da pessoa humana.

Reconhecidonaordem jurídicacomodireitofundamental,anão observânciado direito às cidades sustentáveis deve acarretar a responsabilidade civil, administrativa e criminal dos agentes públicos ou privados que causarem lesão a este direito. A omissão dos agentes públicos que implique a não aplicação e adoção dos princípiosconstitucionaisna implementaçãodapolítica urbanatambémconfigura violação a este direito (SAULE, 2007).

Para assegurar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade como interesse difusodetodosseus habitantese permitir atodosoefetivogozodo direito à cidade sustentável sefaznecessáriorenovaro pensamentojurídicoeconferir eficácia aos instrumentos processuais existentes.

É preciso que se entenda que o Direito não é um sistema objetivo, fechado em si próprio ou neutro em relação aos processos sociais. Ë preciso que se reconheça que o Direito brasileiro tem um papel central no processo de exclusão social e nos processos de segregação territorial, para que se possa avançar no sentido de compreender como o Direito pode ser um fator e um processo de transformação social e de reforma urbana (FERNANDES, 2006).

4          CONCLUSÃO

É na cidade que se desenvolve a vida moderna.A urbanização se deu em um processodedegradação ambiental e aviltamento da dignidade humana, desprovido de aparato jurídico adequado e da implementação de políticas públicas.

Anoçãopolíticaeculturaldodireitoàcidadesustentável,comocarro chefedapolítica urbana,retrataadefesadaconstruçãodeumaéticaurbanafundamentada na justiça socialecidadania.Afirma-se,assim,aprevalênciadosdireitoshumanoseseestabelecem preceitos, instrumentoseprocedimentosparaviabilizarastransformaçõesnecessáriasparaacidadeexercersua função social.

Cidadeecidadaniasãoomesmotema.Nãohácidadaniasemademocratizaçãodasformasdeacessoaosolourbanoeàmoradianas cidades.Não há como promover mudanças significativas e estruturais desse padrão de exclusão social, segregação territorial,degradação ambientaleilegalidadeurbanaquecaracterizao processo de urbanizaçãono Brasil, se não for medianteumareformadoDireito,comoenvolvimentosistemáticodosoperadoresdo Direito (FERNANDES, 2006).

Aosetutelarodireitoàcidadesustentável,tutela-seodireitoàvida, matriz de todos os direitosfundamentais,eaolheconferir efetividade resguarda-se todooplexodedireitose garantiasfundamentais de toda uma coletividade,poisnãoháexistênciadignanomeiourbanosemumacidade sustentável e atenta às suas funções sociais.

O conceito materialmente aberto de direitos fundamentais consagrado pelo art, 5° §2°, da CF aponta para existência de direitos fundamentais positivados em outras partes do texto constitucional. Digna de nota é inclusão do Direito à moradia, no art. 6º da CF (dos direitos sociais). Explicitar a possibilidade de reconhecer direitos fundamentais não escritos, implícitos bem como decorrentes dos princípios constitucionais, tende a elucidar à existência de um sistema de direitos fundamentais aberto e flexível, receptivo a novos conteúdos sujeitos aos influxos do mundo circundante, recepcionando o direito à cidade como direito humano, e sem dúvida,  coletivo.

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[1]Mestranda em Direito nas Relações Econômicas e Sociais da Faculdade de Direito Milton Campos. Bolsista da Capes.

²Advogado.Mestrando em Direito nas Relações Econômicas e Sociais da Faculdade de Direito Milton Campos.